domingo, 23 de novembro de 2008

Ditadura Militar 64 - O pesadelo não acabou

A memória condenapor Gilberto Nascimento O debate sobre a punição a torturadores e a interpretação da Lei da Anistia desatam a irritação dos quartéis e a tensão política. Felizmente, há quem resistaOs militares aproveitaram uma manifestação do presidente Lula para contra-atacar. Durante evento na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) e, em seguida, no encontro com comandantes das Forças Armadas, Lula procurou diminuir o impacto sobre a punição a torturadores da ditadura. Disse que, em vez de xingar os algozes, deveríamos tratar os mortos não como vítimas, mas heróis. As casernas interpretaram a frase como um sinal de que a Presidência quer o fim de qualquer discussão a respeito dos crimes cometidos naquele período.Mero desejo. Ainda que Lula tenha contemporizado diante do comando militar, não seria possível interromper o debate. A bola não está com o Executivo, apesar de o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, terem defendido publicamente punições, mas nos pés do Ministério Público Federal e do Judiciário. E não só.Se a Justiça brasileira entender que os militares autores de crimes como tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados não devam ser punidos, isso não significa necessariamente que o caso estará encerrado. Torturadores e mandantes podem ser processados em outros países e receber, por exemplo, a mesma condenação que alvejou o ditador chileno Augusto Pinochet. Morto em 2006, Pinochet foi preso dois anos antes na Inglaterra, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, por causa de crimes cometidos pela ditadura no Chile. Garzón, coincidentemente, estará em São Paulo na segunda-feira 18, justamente no momento em que o debate esquenta no País. O juiz é a estrela do seminário Direito à Memória e à Verdade, organizado por CartaCapital e pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos.Decisões semelhantes à que atingiu Pinochet podem vir a ser tomadas por outros países europeus. Na Itália já se desenvolvem investigações que apontam 13 militares e policiais brasileiros como responsáveis pelos seqüestros dos ítalo-argentinos Horacio Domingo Campiglia e Lorenzo Ismael Viñas, então militantes do grupo esquerdista Montoneros, considerados desaparecidos políticos. Campliglia desapareceu junto com a argentina Mónica Pinus de Binstock no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1980. Viñas desapareceu em 26 de junho do mesmo ano, em Uruguaiana (RS). Os dois seqüestros fizeram parte da Operação Condor, uma espécie de força-tarefa dos órgãos de repressão de ditaduras da América do Sul nas décadas de 1970 e 1980. A Itália pediu a extradição de 140 militares e policiais sul-americanos envolvidos em seqüestros, mortes e torturas de militantes com cidadania italiana. Entre os processados estão os treze brasileiros. O Ministério Público Federal no Brasil também encaminhou pedidos para apuração desses seqüestros, a fim de punir os responsáveis, e aguarda informações oficiais sobre as investigações da Itália.A França pode reclamar o desaparecimento de Jean Henry Raya, cidadão que vivia em Buenos Aires e veio ao Brasil a passeio em 14 de novembro de 1973, no auge da repressão política da ditadura brasileira. Raya passou por Uruguaiana no dia 18 daquele mês, vindo de Paso de Los Libres, território argentino. De lá, telefonou para sua mulher, Mabel, na Europa. Do apartamento na avenida Atlântica, no Rio, onde estava, Raya contatou amigos em Buenos Aires, por telefone. Foram as últimas notícias sobre seu paradeiro. A França acionou a embaixada brasileira em Paris, mas nada mais se soube dele. A família contratou um advogado no Brasil e buscou informações, sem sucesso. Outro caso está prestes a ser esclarecido e tem mobilizado entidades de familiares de presos e desaparecidos políticos no Brasil, na Venezuela e na Espanha. Envolve o cidadão espanhol Miguel Sabat Nuet, preso por uma equipe do antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) para “averiguação de subversão”, na estação de trem Barra Funda, zona oeste de São Paulo, no dia 9 de outubro de 1973.Nuet foi sepultado um mês e meio depois como indigente, na cova 485 da quadra 7 do cemitério Dom Bosco, em Perus, zona oeste paulistana, ao lado dos corpos de dois guerrilheiros, Antonio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria de Moraes Angel Jones, mortos sob tortura. Familiares na Espanha e na Venezuela – onde moram seus três filhos – querem que o governo espanhol exija explicações do Brasil sobre sua morte. A família encaminhou um pedido de ajuda a Garzón. À CartaCapital o magistrado disse não estar investigando o caso no momento (entrevista à pág. 16). O juiz tem um histórico de investigações de mortes de cidadãos espanhóis pelas ditaduras do Chile e da Argentina. A Comissão de Familiares de Presos e Desaparecidos Políticos no Brasil encaminhou uma solicitação à Federação Latino-Americana de Associações de Familiares de Desaparecidos (Fedefam), sediada em Caracas, para auxiliar os parentes de Nuet a formalizar na Espanha um pedido de investigação. Essa possibilidade torna-se mais factível atualmente em razão de uma corte espanhola ter decidido que qualquer violação de direitos humanos deve ser reprimida por todos os tribunais do país, em qualquer lugar do mundo, envolva ou não cidadãos espanhóis. Por aqui há uma apuração sobre o caso Nuet em andamento. Seus restos mortais foram exumados em abril último, a pedido de procuradores federais. Com a identificação, a procuradoria pretende responsabilizar civilmente o comandante do DOI-Codi (Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo à época, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O coronel é responsável por um sistema integrado de repressão política que envolvia também o Dops. Na área criminal, pretende-se responsabilizar os agentes públicos envolvidos na morte e ocultação do cadáver.Exames de DNA estão sendo feitos no laboratório Genomic, em São Paulo, para confirmar se a ossada encontrada na vala é realmente do espanhol. O resultado deve sair em um mês. Foram coletadas, a pedido do Ministério Público Federal, amostras de sangue de um irmão de Nuet, Carlo Sabat Nuet, de Barcelona, na Espanha, e de um dos filhos, Miguel Sabat Diaz, que vive em Caracas. Nascido em Barcelona, Nuet, então com 50 anos, tinha cidadania venezuelana. Era representante de uma empresa de casas pré-fabricadas e de uma marca de automóveis. Morava em Caracas havia 23 anos e decidiu deixar a Venezuela por se sentir perseguido. Isso foi descoberto a partir de cartas que estavam em seu poder e escritas de próprio punho, encontradas nos arquivos secretos do Dops de São Paulo, abertos em 1991. Ele não tinha ligações, ao menos conhecidas, com qualquer organização de esquerda.Nas cartas, o espanhol, católico fervoroso, dizia-se autor da filosofia Hectólogos para La Paz y La Fraternidad Universal. Em razão de sua teoria, que contrariava a Igreja, sentia-se perseguido. “Nesses escritos, ele parecia muito tenso e perturbado”, lembrou Suzana Lisboa, da Comissão de Familiares de Desaparecidos Políticos, que encontrou as correspondências. A alegação oficial para a morte de Nuet foi suicídio. Segundo agentes da repressão, ele teria se enforcado na carceragem, um mês e meio depois da prisão. A ex-presa política Sonia Miriam Draibe, então militante do grupo de esquerda Polop (Política Operária), estava próxima da cela de Nuet e contou ter ouvido gritos em espanhol pedindo ajuda. Suzana Lisboa acredita que Nuet possa ter sido assassinado por ter testemunhado a morte sob tortura dos presos Bicalho Lana e Sônia Angel. Contatada por CartaCapital, em Valência, a cerca de duas horas de Caracas, a filha de Nuet, Maria Del Carmen, 54 anos, administradora de empresas, disse nem saber qual era a atividade do pai. Ela não acredita que ele tivesse qualquer tipo de atuação política ou religiosa. “Nunca soubemos nada dessas atividades”, disse Carmen. Ela quer a apuração do caso e espera a ajuda do governo ou do Judiciário espanhol. “Tentamos falar com o juiz Garzón, mas não conseguimos. Os assessores dele mandaram uma carta dizendo que não caberia ao juiz tomar a iniciativa da investigação”, afirmou. Carmen pretende pedir indenização ao governo brasileiro e solicitou instruções nesse sentido à Comissão de Familiares de Desaparecidos. A retomada das iniciativas do Ministério Público em desvendar crimes da ditadura aumentaram as chances de o caso Nuet ser esclarecido. Ações de entidades de direitos humanos e eventuais pedidos de esclarecimentos de países como Itália e Espanha se constituem num complicador a mais para os que advogam o esquecimento dos crimes praticados pelos militares durante o regime.De outro lado, aumentam as pressões para que o debate sobre eventuais punições a torturadores seja enterrado com suas vítimas. Elas partem sobretudo dos meios militares. Mas não só. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que, a exemplo do antecessor Marco Aurélio Mello, é acometido de parlapatice diante dos holofotes, fez questão de meter a colher no assunto.Segundo Mendes, a abertura dos arquivos da repressão em países da América Latina “não é a melhor (solução), tanto é que eles não produziram estabilidade institucional”. E prosseguiu: “Ao contrário, eles têm produzido ao longo dos tempos bastante instabilidade”.As experiências internacionais desautorizam a interpretação do magistrado. O Chile e a Argentina puniram seus torturadores sem nenhuma celeuma, crise ou desarranjos institucionais. Um estudo da pesquisadora norte-americana Kathryn Sikkink mostrou que até a violência policial diminuiu nos países onde houve sanções a repressores, pois deixou de haver a sensação de impunidade na sociedade.Mas Lula, sempre conciliador, pediu a Tarso Genro que encerrasse a polêmica com os militares. “Toda vez que falamos dos estudantes e operários que morreram, falamos xingando alguém que os matou quando, na verdade, esse martírio não vai acabar se a gente não aprender a transformar nossos mortos em heróis e não em vítimas”, discursou. Ironicamente, Lula fez essa análise durante um ato que indenizava a União Nacional dos Estudantes (UNE) pela demolição de sua sede durante a ditadura.É um tom ameno, bem diferente do usado pelos participantes de um ato no Clube Militar, no Rio de Janeiro, em 31 de julho. Oficiais da ativa e da reserva disseram, em documento distribuído ali, que se houvesse mesmo interesse em debater problemas nacionais os ministros Genro e Vannuchi deveriam se preocupar com “os inúmeros escândalos protagonizados por figuras da cúpula governamental” ou “a gravíssima suspeita de envolvimento de alguns deles com as Farc (grupo guerrilheiro colombiano)”. Manifestações durante o evento foram bem mais jocosas e violentas. Em alguns momentos, o clima lembrou aquele das vésperas do golpe de 1964.A frase de Lula decepcionou militantes dos direitos humanos. “O presidente terá uma mancha muito grande na sua história por não ter aberto os arquivos da ditadura e por não ter encarado de frente essa questão”, lamenta Suzana Lisboa. “Ele recorreu contra uma ação para reconhecer a existência da guerrilha do Araguaia e nunca cumpriu sentença da Justiça sobre esse caso favorável aos pedidos dos familiares.”Antes da fala apaziguadora de Lula, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, já havia dado o recado. Disse que a punição a torturadores não havia sido discutida no governo. “Não haverá mudança na Lei de Anistia. Não existe hipótese de rever uma lei passada”, acentuou o ministro, cometendo equívoco alimentado pela imprensa nos dias seguintes. Ninguém fala em mudança da lei, e sim que a Anistia não contempla os torturadores. Tortura é crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível, como definem os tratados e convenções sobre o tema assinados pelo Brasil. Outro dado passou despercebido. A Lei de Anistia não foi autoconcedida. Os ex-presos políticos a pediram e, para isso, assumiram os eventuais crimes cometidos. “Nenhum torturador fez isso. Se eles não pleitearam e seus casos não foram analisados, como podem ser anistiados?”, questiona Suzana Lisboa. A anistia não foi “ampla, geral e irrrestrita”, como se reivindicava no início da abertura política, lembrou a ativista. Aqueles que cometeram os chamados “crimes de sangue” ficaram presos por mais tempo e só saíram da cadeia em liberdade condicional. Nenhum torturador teve seu caso analisado para saber se teria direito a um ou a outro benefício.Diante da polêmica, o Judiciário analisa o tema tecnicamente. Mas também se divide. Na terça-feira 12, o desembargador De Santi Ribeiro, da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, votou pela continuidade de uma ação movida contra o coronel Brilhante Ustra pela família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto no DOI-Codi em 1971. O objetivo é responsabilizar Ustra pela morte de Merlino. Sete dias antes, o desembargador Luiz Antonio de Godoy havia acolhido recurso impetrado pelo coronel para arquivar o processo. Agora, há empate. O desembargador Elliot Akel, terceiro a analisar o caso, vai se pronunciar na terça-feira 19.

Nenhum comentário: